Nos confins da memória

27/07/2020

Esta viagem no tempo, aos confins da memória, está a dar-me uma vontade de fumar levada do diabo.

Resisto…

Olho para o meu corpo, do qual sempre me queixei, sem motivo algum, vejo-o agora, e sinto uma certa mágoa do tempo. Da falta de esperança, de perspetiva, do facto de já não ter a vida toda pela frente muito menos o corpo que tinha aos 30 anos.

Vejo bilhetes de concertos sem ano, postais de músicos, ídolos da adolescência, outros tantos de amigos e uns quantos de recordações de lugares onde fui feliz, e os olhos marejam-se-me de nostalgia.

Logo eu, que nunca fui de olhar para trás, ficar presa ao passado, sequer cheguei aos 50…

Descubro palavras antigas cheias de ódio, de revolta, de dúvidas, incompreensões várias de coisas que nunca verbalizei, apenas escrevi, para livrar a consciência da tormenta da adolescência.

Releio declarações de amor ardente, para sempre, e outras tantas recebidas, de amor eterno, de relacionamentos não vividos, apenas imaginados e concebidos em palavras, escritas em cartões de vários lugares da Europa. E cartas escritas de pessoas que ficaram na memória de décadas felizes, mas não na vida de todos os dias.

Nada é para sempre…

Mas já foi, na época em que o tempo não passava, não se perdia, existia apenas no presente e se estendia sem fim, diante dos nossos olhos.

Fotos antigas dizem-me que sorria, quando era criança.

Não me lembro. Lembro-me de um mundo só meu, solitário e silencioso, a infância inteira até aos 11 anos. E lembro-me de alguma rebeldia na pré-adolescência, num colégio que frequentava só de meninas. E, constato agora ao rever fotografias abauladas pelo tempo, que, desde tenra idade, preferia a companhia dos rapazes.

Acho que só na adolescência valorizei a companhia feminina.

Releio cartas antigas e vejo como nos maltratávamos, devia ser das hormonas… Herdámos a falta de jeito das gerações anteriores para a manifestação pública de afetos.

Releio desabafos sobre pessoas que pareciam ocupar-me todo o tempo mental e já não faço ideia sobre quem escrevia. Penso no que era, no que fui, no que sou. Em quem foi e em quem ficou. Recordo a importância de uns e a insignificância de outros. Gente que não faz a mínima ideia que ficou na minha vida, nas minhas memórias, tal como eu não faço ideia em que memórias fiquei.

Permaneço, resisto ao tempo, ao espaço, à vida, e respetivas exigências.

E, talvez pela primeira vez, escrevo um texto sem conclusões que me acalmem a consciência e me aplaquem a vontade de fumar.

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