No outro dia escrevia que não sabia se teria vivido uma vida de coragem e com coragem. Apesar de ser mais corajosa do que a grande maioria das mulheres que conheço. E dos homens, já que falamos nisso… Não sei bem se é coragem, a coragem também pode ser uma fuga e, nesse caso, não se trata de coragem, mas de cobardia. Às vezes, apenas sobrevivência. Bom senso.
Invariavelmente, vem-me sempre à cabeça a frase: aproveitar a vida. Ou to have fun.
Não faço ideia do que seja nem uma coisa nem outra. Muito menos por que qualquer uma das duas tem obrigatoriamente de significar que vivemos a vida.
Estava aqui a ler um texto do último livro do Joel (e da Catarina), que me inspira sempre a querer escrever melhor e que ainda por cima fala de 1997. É um texto com muita coragem, aquela em que assumimos as nossas pretensões e megalomanias em público, ainda que na intimidade das páginas de um livro. E não num texto online, cujo alcance pode ser planetário, com as devidas consequências. Nesse texto, o Joel dissipou-me as dúvidas. Diz ele que se conseguimos rir e chorar ao mesmo tempo ao lembrarmo-nos da vida que vivemos, quer dizer que a vivemos.
Como deve ser, à nossa maneira, acrescento.
O que me deixa tranquila quanto às decisões que tenho tomado, às vésperas de completar meio século de vida. Desistir de umas coisas, abraçar outras. Desistir da mentira que é a fantasia, abraçar um trabalho que não é o ideal, mas que me paga as contas e me distrai a cabeça do que não tem solução, futuro, consistência.
Com a certeza de que não pactuarei com a insanidade, me vergarei a troco de umas milhas de avião, perderei a dignidade por um jantar, aproveito para trabalhar mais um dia por semana, com direito a horas extraordinárias e a bónus, que me paga duas contas, se despachar 60 emails em 8 horas. Ao fim de 4, está feito, restam-me outras tantas para dar conta das pendências.
O que também é viver com coragem.
Troco as manhãs de sábado de escrita por trabalho pago, enquanto há, posso, me apetece, me faz sentido. O trabalho não acaba, mas eu dei-me um tempo para pôr termo a esta história, a esta fantasia, a esta ilusão.
Ainda não consigo voltar a ela. Perturba-me o sono, enche-me de tristeza profunda, de incredulidade insone, de desespero absoluto. Enquanto as saudades me consomem e a solidão é driblada pelos problemas dos outros, quanto mais mundanos melhor. Não posso dar-me ao luxo de ter insónias.
E tu ainda me tiras o sono…
A sexta-feira à noite dos outros é uma perturbação. De má música e gargalhadas altas. Não vejo a hora de me mudar para o Alentejo…
Digam-me o que posso e não posso fazer, quais os objetivos, e deixem o resto comigo. Eu e eles, a gente orienta-se. Os resultados estão à vista. Tem de ser à minha maneira. Os INFP não gostam de regras, não se sentem autênticos, não são iguais aos outros. Mas chegam lá. E são bons, muito bons…
Não é pelo ego, é pelo outro. E por nós, para sermos deixados em paz.
A gente faz de maneira a que o outro seja independente, se oriente, não volte com o mesmo assunto. Se torne autónomo. E eles agradecem. A nossa rapidez, eficiência, paciência, o nosso cuidado. E, em momento algum, me sinto graxista, submissa, usada, abusada. Ponho-os na ordem e no fim reconhecem-me, dando-me um bom score, comovem-me, até. Na grande maioria das vezes, deixam-me a sorrir. Ao que lhes respondo:
Thank you ever so much for your kind words. Às vezes, acrescento: they made my day…
E eles gostam, sorrimos e, por uns minutos, acreditamos que estamos todos cá para o mesmo: um mínimo de humanismo, reconhecimento, genuinidade, compaixão, generosidade, de, no limite, boa vontade.
Que andamos aqui todos sem saber o que fazer, mas esforçamo-nos por tentar, por não ser uns cretinos, umas bestas, uns anormais, uns doentes mentais, uns psicopatas. Esses são só meia dúzia e, quando percebermos isso, essa meia dúzia acaba, perde poder, força, influência.
Viver com coragem, with guts, tem muito a ver com instinto, entranhas.
O que as revolve e o que elas nos dizem.
Às vezes traduz-se num salto de fé, às vezes em resistência. Outras consiste apenas em virar uma chavinha no cérebro, que nos facilita a vida e nos mantém o ego intacto.
Viver com coragem é fazê-lo com dignidade. E essa, acho que ainda não perdi.