Da vitimização à autorresponsabilização

29/01/2022

A vitimização é, provavelmente, um dos maiores, se não o maior, impedimento ao crescimento psíquico.

Individual e coletivo.

Não se trata de negar ou culpar a vítima, pelo que lhe aconteceu, muito menos pactuar com um crime, como é evidente.

Mas de identificar a vitimização como o principal definidor da nossa identidade.

Naquela relação do Bruno com a Liliana, fartei-me de ver gente dizer que ele é o manipulador e ela a manipulada. Como se esta não estivesse a gostar da atenção, do carinho e do afeto. Não tivesse voz, pernas para se afastar. Vontade própria e ali estivesse obrigada.

Não está, como, aliás, deveria ser óbvio.

Quando nos identificamos com o papel da vítima estamos, necessária e inconscientemente, a admitir que não temos qualquer poder em relação a nós mesmos. Ficando completamente nas mãos dos outros. E, ao contrário do que possa parecer, ambos, vítima e perseguidor, exercem poder e controlo um sobre o outro.

Não existe vítima sem perseguidor e vice-versa.

Quando paramos de nos ver como vítimas, não há perseguidor que vingue. Sequer chamamos a sua atenção. Ele sabe, intuitivamente, que não irá exercer qualquer influência sobre nós. Sequer perderá o seu tempo. A não ser que se sinta ameaçado. O que é muito evidente no coletivo.

Por outro lado, a toxicidade, a existir, é na relação, não nos protagonistas da mesma.

Por isso, tanto é tóxico o controlador quanto o controlado. Já que ambos impedem que o outro cresça em relação aos seus medos e necessidades individuais.

Exceção feita aos casos de narcisismo patológico, a obsessão, a possessividade, o ciúme, o controlo têm muito que ver com a insegurança de um dos membros do casal em relação aos sentimentos do outro. O não saber exatamente a medida do seu compromisso, do seu afeto e amor.

Que há um desequilíbrio emocional.

Por outro lado, o assédio mede-se, primeiro, pelo poder e controlo, agressão e invasão. De uma pessoa, ou grupo, em relação ao espaço (ao corpo, à cabeça, à individualidade) da outra.

Pressupõe que uma delas não queira ser invadida.

Não há assédio a partir do momento em que, por mais horrível que pareça, dois adultos – de igual para igual e em plena posse das suas faculdades mentais – negoceiam, estão um com o outro de livre e espontânea vontade.

Porque um e outro sentem que podem ganhar algo com isso.

Seja poder, status, um cargo profissional, a ilusão do amor, o jogo.

Assim, alguém que se identifica com o papel da vítima é sempre alguém que se acha menos (ou mais…) do que o outro. Depende dele para chegar mais longe. A isso chamamos co-dependência.

O problema está em acreditar que alguém que pretende exercer o seu poder sobre nós nos vai ajudar a chegar mais longe.

Quem se move por poder e controlo jamais está por nós, pelo nosso crescimento, sucesso, independência.

Por não saber viver de outra forma a não ser pelo domínio psicológico, físico e emocional.

Por isso, a vitimização é o maior impedimento ao crescimento e à evolução psíquica por nos fazer permanecer sempre na mesma posição, negando-nos autonomia, vontade própria, superação de medos, transcedência necessidades infantis, caprichos do ego.

Já a autorresponsabilização permite-nos olhar para uma relação em que estejamos, seja ela de que tipo for, e perceber porque aceitámos o que aceitámos. Ficámos onde ficámos, quisemos o que quisemos. O que nos levou a permanecer ali. Está por detrás disso: que vontade, desejo, necessidade? É para isso que serve o autoconhecimento.

A vitimização mantém-nos no complexo.

A autorresponsabilização leva-nos à totalidade do arquétipo. Ao seu lado solar e lunar. À integração do conteúdo psíquico que ficou preso no complexo e à superação do mesmo. Assumindo esse conteúdo, que até então estava sombrio, na consciência.

Lidando com ele, parando de o projetar nos demais.

Coletivamente, a vitimização leva-nos a pensar que precisamos de um salvador. Projetando todas as nossas valências em políticos, grupos, ídolos, parceiros amorosos, chefes, pessoas mais ou menos públicas.

Que apenas defendem os seus interesses pessoais, jamais os do conjunto. Como todos quantos se movem por poder e controlo.

Todos nós precisamos de um certo nível de poder e controlo sobre nós e a nossa própria vida, isso é saudável. O perigo está em apenas sabermos viver assim. Sobrepondo esse medo à experiência da vida. Que também inclui vulnerabilidade.

O poder e o controlo levam à tirania emocional. A vulnerabilidade à humanização.

Assim, a autorresponsabilização eleva-nos a outro patamar: em vez de co-dependentes, sejamos co-responsáveis: responsáveis para com os outros e não pelos outros.

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