O livro que o Ricardo Araújo Pereira sugeriu no último Governo Sombra foi o Escrever, do Stephen King, finalmente traduzido. Disse, e bem, que não havia muitos livros sobre o tema traduzidos em português.
Mencionou o Cartas a um jovem poeta, do Rilke, que é belíssimo, o cartas a um jovem romancista, do Llosa, que não conheço, e o do Mário de Carvalho, que li por sugestão do Joel.
Também disse que para escrever era preciso ler. Ler mais e ler sobre escrever.
Gostei de o ouvir dizer que o fascina ler sobre o metier.
Coincidência ou não, e depois de um tempo obcecada por livros sobre escrever, nomeadamente por duas autoras de que gosto muito, a Natalie Goldberg e a Julia Cameron, voltei a esta e ao último que havia comprado nessa fase e no qual não tinha ainda pegado.
Não sei se The Vein of Gold é o
melhor,
mas é seguramente dos que mais efeitos imediatos produz. E acrescenta uns pózinhos fundamentais à ideia de que para escrever basta ler.
Como já havia dito, a grande diferença entre elas é que a Julia é mais terapêutica na abordagem. E um dos exercícios que propõe, de onde os seguintes partirão, e que estou neste momento a fazer e me está a dar um gozo e um prazer indescritíveis, é a nossa linha do tempo narrativa.
Dito assim parece um bocado narcisista.
E se calhar é. Mas a verdade é que para escrever, criar em geral, é preciso ir lá atrás e contactar com momentos e palavras que fizeram precisamente que nos afastássemos do ofício criativo. Por vergonha…
É particularmente relevante a consequência que ela associa à vergonha: vício…
O RAP já contou várias vezes a história da avó lhe dizer que ele não tinha graça alguma, apesar de se rir com as coisas que ele dizia.
E isso poder ser um argumento válido. E que contraria este.
Mas também pode ser que ele tenha mais o que expressar, além do humor, e não o faça, por se achar ridículo, ou que, como ele já disse várias vezes, não tenha importância. Nomeadamente os sentimentos:
“Porque são meus e porque são sentimentos”.
A quantidade de coisas que atirámos para os cantos mais escuros da memória e que vêm à tona só de ler as palavras da Julia Cameron, e o poder que essas memórias têm de arrastar outras para a consciência, tem tanto de nostálgico, e de assustador, quanto de libertador.
Esse é o verdadeiro poder do contacto com a sombra
Não o de nos tornarmos sombrios, mas de nos libertarmos do seu subjugo. E assim conseguirmos chegar ao ser criativo que foi soterrado por críticas, desincentivo, gozo, desprezo.
Um criativo, um artista, é necessariamente ligado à criança que ainda mora nele. As crianças não têm medo nem vergonha das suas criações, da imaginação, das histórias que inventam. Não se preocupam com a veracidade, apenas com a expressão das suas ideias e emoções.
E é essa vergonha, que nos foi incutida, que precisamos de perder.
Ao revisitar a nossa linha do tempo narrativa, reconstruindo-a, podemos substituir palavras críticas por outras. Porque agora temos olhos e consciência para nos vermos de outra forma. Da forma que somos e não da forma como nos veem e que acreditámos ser o que constitui a nossa identidade.
Caso contrário, os exercícios criativos propostos pela Natalie Goldberg podem ficar por fazer. Por vergonha, bloqueio criativo e artístico. Cuja origem está lá atrás, no lugar que precisamos de revisitar e recriar.
Gostei mais de ler a Natalie, mas os exercícios criativos da Julia foram de longe os meus preferidos.
Os que me levaram para lugares incríveis, sensações boas, de plenitude, de conexão.
Ambas têm funções completamente diferentes, mas os dois modelos são fundamentais. E nenhum é melhor do que o outro.