Naquele texto de resposta da minha mãe sobre o pão por deus, houve duas coisas que fizeram soar um alarme na minha cabeça. A primeira é quando diz: A minha mãe nunca me deixava ir, porque achava que eu não devia ir pedir, e quando diz: É que injustamente, porque eu era «a menina». Perguntei-lhe o que queria dizer com aquilo, se era por ser a mais nova ou a mais gira. Respondeu-me que: Era a menina porque, no sítio onde vivia, tinha uma condição social diferente. As minhas amigas eram praticamente de pé descalço e eu era a menina do sr. professor. O meu avô, que não conheci, era professor primário.
Primeiro, soou-me mal aquele: achava que eu não devia ir pedir. Mas depois percebi, a minha avó não achava bem que a minha mãe, não precisando, fosse pedir. O que ela não entendeu é que aquela era uma necessidade da minha mãe de pertencer, o que é normal para a idade que tinha. Se todas as crianças iam fazer a brincadeira de pedir doces, ela também queria participar A minha avó simplesmente proibiu-a por achar que havia outras crianças que precisariam de aproveitar aquele momento para pedir e se a minha mãe recebesse, outras receberiam menos, ou não receberiam de todo. A minha avó poderia simplesmente explicar-lhe isso, deixá-la ir pedir e depois sugerir-lhe que dividisse com as amigas o produto do peditório. Mas não lhe ocorreu, enfim. Não me ocupou muito tempo, só depois, quando veio a explicação do porquê da “injustiça” é que me toquei.
É uma merda viver uma vida em que nos culpamos por termos um pai professor, quando a vizinhança trabalha na agricultura, por exemplo… É uma chatice sentirmos que a vida é injusta porque o nosso pai, que amamos, que é digno, respeitável, responsável e faz um excelente trabalho como professor, para além de ser bom pai, afinal não é agricultor, para podermos ser tão humildes quanto os outros, coitadinhos. É uma merda sentirmo-nos culpados por podermos ter estudado, ter tido uma boa educação, por sermos quem somos. É lastimável que se odeie, recrimine alguém por ser rico, querer coagi-lo a deixar de ser só porque o outro não o é. É doentio e neurótico, para além de estúpido, levar uma condição de vida pior só para não ofender quem tem problemas com isso, mostrando-lhe, ao mesmo tempo, que é só até aí que pode chegar, pois se o rico que é rico vive assim… E quando um rico ajuda – e rico é um conceito bem diferente de pessoa para pessoa, para alguns é apenas poder dispensar 200 euros para ajudar uma instituição qualquer – porque pode, quer, lhe apetece e dá descontos no IRS, cujo escalão está lá nas alturas porque trabalhou para isso, e cuja brutalidade de impostos que paga serve, inclusive e supostamente, para financiar instituições públicas, nomeadamente hospitais e escolas, é um filho da puta por causa da caridadezinha. Porque os pobrezinhos ajudam os ricos a serem pessoas melhores. Esses putos, é por causa deles que nós somos pobres e outras alarvidades do género que se lêem por aí. É lastimável que se olhe constantemente para a grama do vizinho, em vez de se cuidar da sua. É lastimável que se continue a confundir dignidade com poder de compra.
Como sou bem nascida, também aprendi que a ostentação é delírio de novo rico, de mau gosto, quase uma falha de caráter. Daí que não seja coisa que pratique, a não ser naqueles dias em que me sinto um lixo e preciso de me convencer de que sou querida pelos meus, o que não tem nada a ver com a posse de bens materiais, muito menos com a sua ostentação, numa tentativa de compensar uma falta qualquer…
Ia devolver a culpa à influência judaico-cristã, mas depois lembrei-me dos gregos, que gostavam da justa medida, e do facto de alguém que saia da suposta justa medida ser punido. Talvez seja esta a razão.
Felizmente, não vivemos na Índia e aqui, no mundo ocidental, ninguém é condenado à nascença pela condição social em que nasceu, sendo isso e apenas isso, uma vida inteira.
Pela parte que me toca, continuarei no já bem sucedido processo de não me sentir culpada nem coagida por ter feito boas escolhas, por ter a felicidade de ter uns pais como os meus, que também fizeram boas escolhas, mediante as condições que os seus pais lhes deram, que trabalharam a vida inteira e me deram, e dão, uma excelente condição de vida, que não se prende com mensalidades astronómicas muito menos com noções distorcidas de boa vida, mas sim com valores, valores a sério, daqueles que não se compram com meia dúzia de zeros numa conta bancária, muito menos nascem de uma conta com igual número de zeros…
Concordo. Acho óptimo falares desta temática porque é uma temática quase tabu.
E porque é fácil cair nessa casca de banana. Eu muitas vezes senti-me injustiçada por não conseguir fazer o que a maioria dos meus amigos fazia (por acasos da vida ou afinidades várias sempre me dei maioriatariamente com pessoas) e lembro-me que era uma tentação faze-lso sentir mal por poderem e eu não.
Hoje já vejo isso como mesquinho. Mas é complicado não é? (E estou a ser muito fútil porque nunca me faltou nada do essencial).
olha, é normal querer fazer o que os outros fazem, a necessidade de pertença é natural em nós, mas só se justifica até ao fim da adolescência. Depois disso revela problemas sérios de falta de identidade, pessoas cuja existência só se justifica através do grupo.
a questão, parece-me, é basicamente esta e não se trata de miserabilismo, ah e tal contenta-te com o que tens. trata-se de auto-suficiência, de esforço individual. se achas que para ti é importante teres um iphone, trabalha para isso e compra-o. o facto de se insistir nisso uma vida inteira sem se questionar se de facto se é mais feliz porque se tem um iphone, e isto é só um exemplo, pq foi conotado como símbolo de status, é que me parece grave. porque a questão de fundo fica por resolver, que é: o pq dessa necessidade quase esquizofrénica de aparência, de status, o pq de não te aecitares a ti mesmo, nao te valorizares por seres quem és, não pelo que tens. conheci mto escroque riquíssimo e mto boa gente com menos posses. Aliás, os meus melhore amigos, as melhores pessoas que conheço, eram de uma condição social diferente da minha. e fizeram um bem enorme para a minha evolução individual.
e há coisas que não consigo ultrapassar, com as quais me custa conviver, falta de boas maneiras, por exemplo, que tem pouco a ver com pose… e que existe em todos, todos os meios sociais… talvez nas classes mais baixas menos, o que é bem fácil de entender, as prioridades são outras, mas isso pouco me satisfaz no convívio diário, em relações mais profundas e mais íntimas, por exemplo…
bjo
Nem imaginas o quanto me identifico e entendo este teu post. Passei por isso toda a minha adolescência, sim, porque é nessa fase que os outros mais nos apontam o dedo e as coisas nos incomodam mais. Nasci numa família de médicos. O meu bisavô, avô, o meu pai, os meus tios e, mais tarde, alguns primos, são (eram) todos dentistas. Sempre tive a sorte de poder ter uma vida boa. Não eram só as roupas caras que provocavam os olhares maldosos na escola – azar dos azares (e hoje sei que foi o melhor para mim) ter ido para um liceu público – não eram só os relógios da moda, a melhor mochila, as melhores botas. Era também o facto de poder ir sempre a todo o lado, àquela festa de anos, ao cinema, à discoteca, sem precisar contar os trocos. Era também o poder andar no ballet, na patinagem, na ginástica, nas aulas de piano e tudo o que me desse na cabeça fazer. Os outros olhavam, falavam, criticavam. Na cabeça iluminada daqueles adolescentes, o meu pai só podia ser um traficante de droga. O que eu me rio hoje em dia com tudo isto! Mas na altura não achava assim tanta piada. E cheguei ao ponto de deixar de usar e fazer certas coisas, de não querer mostrar o que podia ter para assim me sentir mais igual aos outros.
Com a idade isso foi mudando, claro. Tomei consciência de que o erro não estava em mim ou na minha família, mas sim nos outros. Eu tinha de aceitar as diferenças e os outros também. Hoje em dia, é para o lado que durmo melhor. Faço a vida que posso fazer, pago as minhas contas com o meu trabalho, e não deixo de usufruir daquilo que gosto e posso, só porque os outros acham que é um exagero, e porque o país está em crise e etc.
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