No meu facebook é como na farmácia, há de tudo. Não sei se no vosso também acontece, mas no meu, volta e meia, alguém se lembra de postar qualquer coisa do género: “seleção nacional de andebol de pessoas com síndroma de down vence campeonato mundial”, com a legenda: porque é que ninguém fala disto? Quem diz pessoas com síndroma de down diz paraplégicos, tetraplégicos, e por aí fora, no que ao campo vastíssimo das doenças e incapacidades físicas diz respeito.
O motivo é mais ou menos o mesmo que levou Matt Damon e a Globo a aconselhar estrelas de cinema e tv a não divulgar a sua homossexualidade. E tem a ver com fantasia.
A fantasia ocupa uma boa parte do cérebro e do tempo mental de cada um. Sem sonhos não somos grande coisa, sem fantasia somos profundamente infelizes, sejamos crianças ou adultos.
E se a fantasia pode passar pelo desejo de consumar um affair ou quiçá um casamento para o resto da vida com uma estrela de Hollywood, também pode estar relacionada com o desejo se ser reconhecido mundialmente por um feito histórico e difícil para o cidadão comum.
As fantasias de gente com autoestima visam feitos felizes, grandes conquistas, admiráveis pelo comum mortal. As fantasias de gente sem autoestima visam o protagonismo de feitos heroicos à custa da desgraça alheia, da violência, da destruição. Mas uma coisa não visam, algo que lhes dificulte a vida, pelo contrário, a concretização de uma fantasia serviria supostamente para, de alguma forma, lhes aliviar a existência. E prender-se-ia com algo de que nos julgamos capazes ou que adoraríamos concretizar, tivéssemos corpinho ou cérebro para isso. Tem a ver com as nossa paixões, os nossos traumas, os nossos desejos não consumados.
Daí que o facto de a seleção nacional de andebol de pessoas com síndroma de down ser campeã não interesse ao cidadão comum, porque é uma coisa à qual este não quer aspirar, nem pode, que é ser campeão mundial de andebol de pessoas com síndroma de down, simplesmente porque ele não pode ter síndroma de down. Já no caso de tetraplégicos e tais, os feitos destes interessam a pessoas nas mesmas condições, lá está, porque lhes dão a esperança de também elas chegarem lá, a esse estatuto, onde a vida, acreditam elas, será mais fácil. Como é óbvio, quem não está nas mesmas condições, não quer nem almeja estar…
A fantasia não é necessariamente literal, por mais que admire o Cristiano Ronaldo não almejo a ser homem muito menos jogador de futebol, mas há características dele, que o fizeram chegar onde chegou, que me fazem admirá-lo e de alguma forma ter vontade de privar com ele, a ver se por osmose as adquiro e as adapto a mim e à minha realidade. Pelo menos irritava a D. Dolores. Como se o Cristiano Ronaldo, ou quem quer que seja, tivesse a solução para a minha vida. Muito provavelmente tenho-as, ou não as projetaria nele, só não as desenvolvi, não lhes dei demasiada importância, e obviamente que não me refiro ao 6 pack ou às pernas musculadas. E todos sabemos que a fantasia só funciona enquanto for fantasia. Por isso, na grande maioria das vezes, mesmo tendo a possibilidade de materializar a fantasia, não o fazemos. E quando o fazemos acabamos sempre desiludidos, porque o objeto da fantasia não é mais do que o que projetamos nele, inspirados pelo que achamos que conhecemos dele, que é apenas e na melhor das hipóteses a sua persona. O Cristi deve ser um gajo difícil pra cacete de lidar.
De resto, as pessoas falam, divulgam, partilham, comentam o que lhes alimenta a neurose, o que precisam de ver validado, o que querem validar, e isso é pessoal e intransmissível, apesar de muitos temas fazerem parte do consciente e inconsciente coletivo de todos nós e por isso serem comuns.
As pessoas gostam muito também de viverem a policiar a atenção alheia, como se todos tivéssemos obrigação de ter os mesmos gostos e os mesmos interesses e querermos todos apoiar as mesmas causas. Como é sempre bonito vir defender “os fracos”, fica muito bem vir perguntar porque é que ninguém lhes dá atenção, mesmo que depois continuem sem fazer nada para que essas pessoas deixem de ter papel de cidadão de segunda categoria.
eu acho que por trás disso há a profunda e enraizada necessidade de ser infeliz e portanto tudo o que soe a desgraça é exaltado ao expoente máximo. Uma doença é uma desgraça, por mais que o seu portador ganhe o campeonato mundial de andebol de pessoas com síndroma de down…