Estava aqui a ler o livro do João Tordo sobre escrever, que é bem bom, por sinal, e, não pela primeira vez, me deparo com a frase lapidar que diz que a vergonha suprema, para os autores e as editoras, editores, agentes e o diabo, é cometer o pecado capital de auto-publicar.
Escritor que se atreva a auto-publicar está vaticinado. É o equivalente à sentença de morte.
Vou abster-me de referir que Stephen King, Mark Twain e Margaret Atwood, que parece que até têm livros que viraram filmes e séries, mas isso também diz que é mau, são apenas alguns exemplos de autores famosos que começaram por auto-publicar.
Parece-me que afinal já disse, paciência.
Também vou abster-me de dizer que isso de “ter um editor ser fundamental” é muito bonito, e verdadeiro, mas é preciso tê-lo.
Normalmente quem o diz é por já o ter…
E abster-me de comentar a primeira frase que vem à cabeça de qualquer um sobre o tema: se não encontras um editor é porque não escreves grande coisa; não tens público; não há mercado, esta é a minha preferida, etc. Porque o trabalho do escritor é escrever, o de encontrar “um mercado” é de outra pessoa qualquer, que é melhor paga do que o escritor para o fazer.
Se pudesse livrar-me disto, garanto, caro João, que o faria.
Mas não posso. Não consigo deixar de escrever. Sou torturada todos os dias por ideias, histórias, símbolos, vozes, todos os dias, a todas as horas, minutos e segundos. Já tentei de tudo, não dá, não funciona, escrever E publicar é a minha cena. E não duvido que escrevo bem, tenho uma voz e sei qual é, e sou original na forma como o faço.
E que o que faço é literatura.
Tal como o que a Diana Gabaldon faz é literatura. E ainda assim tem uma série de TV de sucesso estrondoso à conta disso.
Mas não é de mim que quero falar. Não necessariamente, pelo menos. Não me dei ao trabalho de escrever isto para me defender.
Mas para falar sobre isso do interesse, do mercado, do público, e o diabo.
Pode ser megalomania, falta de noção, carência, chamem-lhe o que quiserem. Mas isto de as palavras não nos deixarem em paz, e se calhar faço-o mais por mim do que por quem quer que seja, claro que sim, tem a ver com algo muito forte que me diz: não posso morrer sem pôr isto cá para fora, com testemunhas. São as histórias, os temas, os conceitos, que não me deixam em paz. Mesmo que não tenha um mercado a validar-me, um público a implorar-me para escrever, é mais forte do que o meu ego. Se fosse só por ele já se teria dedicado à pesca.
É da alma.
Um dia destes, um colega de trabalho mandou-me um vídeo de uma argumentista de cinema chamada Pamela Jaye Smith. Vi o vídeo, adorei o que ela disse e, obviamente, fui à procura dos livros.
Que ela e os seus co-autores não escreveram para enriquecer…
Achei dois no Book Depository que encomendei de imediato, porque os temas muito me interessam. Li o primeiro e adorei. Basta abri-lo para se perceber que é uma edição de autor. E má, porque nem justificados estão os textos. No entanto, o conteúdo é preciosíssimo. Fundamental para quem quer escrever histórias, saber dos arquétipos, de como as coisas funcionam, porque funcionam daquela maneira e não de outra.
Sendo eu avessa a regras, espartilhos técnicos, fórmulas, receitas. E ainda assim.
Bem sei que as editoras não são a santa casa da misericórdia. Mas se o interesse é apenas lucro e vender a qualquer custo, dediquem-se à venda de roupa produzida no Bangladesh, que dá mais resultado e menos dores de cabeça. Ao menos, não têm de lidar com autores hiper-protetores dos seus filhinhos bebés, os seus manuscritos.
Andei a trocar mails com a autora, que é uma simpatia, para conseguir mais dois que não estão à venda no Book Depository. Lá os descobri na Amazon com preços de envio de bradar aos céus, por isso não mando vir nada de lá, nunca. E estou deserta que cá me cheguem.
Por falar em mercado, e depois de a livraria do King ter acabado, andava louca à procura já não sei de que livro do Hermann Hesse. Não havia, não há mercado.
Não há mercado para um prémio nobre da literatura? Está má, a coisa…
E isto de ir à procura das novidades literárias como quem vai à banca de jornal à procura da Nova Gente para saber das últimas sobre as vidas dos atores das novelas é de uma pobreza franciscana difícil de engolir. E que abona muito pouco a favor da literatura.
Que não é uma moda, um autor “não está a dar”, a literatura não é um fogacho.
Muito menos a criação é um capricho.
A literatura é intemporal, porque os seus temas e personagens são arquetípicos e por isso universais, atemporais, enquanto os conflitos psíquicos não se resolverem, a literatura e a arte em geral sobreviverão. Inclusive aos seus criadores.
A verdade é que me interessa muito pouco essa conversa do mercado.
O que me interessa é conseguir os livros que quero, sei que existem e que, evidentemente, têm quem os compre. Que não seja um gajo mal disposto a decidir o que “vende” e não vende. O que o público quer e não quer.
Não cessa de me surpreender como é que alguém se vê no direito de falar pelo “público”.
O livro do João Tordo é bom, eu não quero pagar para publicar, mas insisto em querer publicar um livro que escrevi, que quero dedicar à minha mãe, e que fui publicando aqui, outro pecado capital. E cujos textos, para o bem e para o mal, foram dos que mais reações extraíram aos leitores. Se calhar até tem público, mas eu não tenho editor…
E é importante dar esse passo. Porque, mesmo sendo auto-publicação, não deixas de enfrentar o medo da exposição, dás esse salto, que é fundamental para não ficares na ideia romântica de que ser escritor é seja lá o que for que tu achas que é. E que na verdade é pouco relevante. O que é relevante é o que se produz, o que se escreve, e não o que se diz sobre isso.
Ou o processo, o “sofrimento atroz que é escrever.”
Poupem-me, sofrimento atroz é fazer num trabalho de merda, mal pago, que te atrofia o cérebro e a veia criativa. Faz de ti amargo e com vontade de maltratar os outros. Ou ser estivador, carregar baldes de cimento o dia inteiro, isso sim, é duro.